Os anos foram correndo, as lágrimas sessaram, outras tantas eu conheci e beijei. Reformei minhas emoções, reformei meu quarto. O mural foi retirado de seu lugar, as fotos foram empacotadas.
Dez anos depois, chegando da faculdade, indo pegar o elevador, esbarrei nela, Marcela. Marcela, de olhos profundos e esverdeados. Marcela de cabelos soltos acariciando os ombros que me lembraram a cor do mel. Marcela de bochechas coradas, de nariz fino e pequeno, de boca rosada. Marcela de altura mediana, magrinha, de vestido na altura das coxas. Marcela, agora uma bela mulher de vinte e um anos, e eu, Thomas, um homem de vinte e três, ali parado a admirar meu amor de infância.
Sorri sem graça com medo de que ela não me reconhecesse, mas ela me sorriu de volta e arqueou as sobrancelhas.
-Thom? - Ela disse, abrindo ainda mais o sorriso.
-Marcela? - Tentei fazer entonação de certa dúvida, mas tinha completa certeza de que era ela.
-UAU, meu Deus, que ótimo te encontrar! - Exclamou já partindo para um abraço.
Era o mesmo abraço de dez anos antes, acolhedor, macio. Desejei ficar ali entre aqueles braços mais tempo, mas ela logo soltou para me olhar.
-É mesmo, quanto tempo... hm, o que tá fazendo aqui no prédio? Sua mãe já se mudou faz alguns anos...
-É, eu sei, é que eu voltei pra cidade, estou procurando um apartamento para dividir com umas amigas e acabei vindo parar aqui.
-Sério? Vai mesmo ficar de vez? - Pronunciei com empolgação de mais, como o menino de treze anos que ela deixou pra trás.
-Aham, passei no vestibular daqui e resolvi voltar.
-Que ótimo, Marcela, parabéns! Então nós vamos voltar a ser vizinhos... - Não conseguia controlar a empolgação na voz.
Vizinhos... Saídas à noite para beber, às vezes acompanhados pelos amigos, às vezes sozinhos. Marcela que em três meses depois aceitou ser minha namorada. Não me envergonho de dizer que eu vivia Marcela. A vida era tão mais bela! Minha mão em seu pescoço, meu rosto perdido em seus cabelos, seu olhar em minha boca. Marcela agora era céu, era ar, era sol, era sombra fresca. Era um sentar em baixo de uma árvore para ler um bom livro com minha cabeça repousando em suas pernas. Marcela era beijo doce e sem fim. Era força, apoio, confiança. Marcela era amar e ser amado. Eu a amava tanto que vira e mexe até transformava o sentimento em poesias piegas. E assim seguiu minha vida feliz... Marcela do Thomas e Thomas da Marcela; não podia ser mais prazeroso.
Oito meses depois fui esfaqueado com uma notícia: minha mãe tinha câncer e não havia nada que pudéssemos fazer, era questão de esperar. Eu chorei tanto. Encharcava travesseiros, mangas dos casacos, lenços e lençóis. Eu virava as noites perturbado, rolando pela cama, mente dormente e coração pesado. Justo nessa época Marcela começou a se afastar, me deixando perdido, cada vez mais longe de seus toques, tão distante de seus beijos, beijos agora curtos e penosamente frios. Em meio aos dias cansativos, tentando lidar com a doença da minha mãe que se mostrava cada vez mais debilitada, me esforçando para não repetir matérias na faculdade, ainda tentava resgatar Marcela.
Emagreci uns dez quilos, ganhei olheiras, notas ruins na faculdade e Marcela continuava a se afastar. Tentei de todas as formas que pude trazê-la para dentro de meu abraço e não deixá-la sair jamais, mas agora Marcela era pálida, de meios sorrisos, poucas palavras. Em nossas conversas seu olhar se tornava vago como se estivesse em outro lugar, suas mãos fugiam às minhas. Não havia jantar, passeios, flores, chocolates ou conversas que a fizesse voltar.
Em uma tarde, como que adivinhando o que estava por vir, cansado de toda aquela tempestade, me arrastei para a cama da minha mãe e me aninhei ao lado dela. Chorei como nunca havia chorado antes, um choro que me fazia sentir-me trêmulo, frágil. Em meio aos soluços contava a minha mãe meu medo de deixá-la morrer, eu não tinha mais ninguém, Marcela tão distante me deixando tão angustiado. Minha mãe me afagava com carinho e me dizia que tudo ficaria bem, de uma forma ou de outra. Dois dias depois Marcela terminou comigo. Uma semana depois minha mãe faleceu.
Fiquei tão perdido, sem pernas, sem ar, sem forças, sem perspectivas da possibilidade de ter um bom futuro. Marcela não mais me ligou, não mais me atendeu, não me procurou. Nos víamos algumas vezes no saguão do prédio, mas minha presença parecia não significar nada para ela. Ela tinha escolhido me deixar e parecia estar convivendo muito bem isso, o que me deixava aos pedaços.
Em uma certa tarde fui para a nossa sorveteria, nosso lugar. Ela estava lá, sentada em nossa mesa. Seus olhos brilhavam, sua pele estava corada como se tivesse passado um final de semana na praia. O som de sua risada me fazia estremer de saudade. Suas mãos estavam em cima da mesa, macias e alongadas, buscando um outro par de mãos. De frente para ela estava um outro alguém, alguém que ela deve ter conhecido enquanto eu era só um zumbi que sugava as energias dela para tentar sobreviver nos meus dias penosos. Alguém para quem ela sorria e dava as mãos e inclinava o busto por sobre a mesa para beijar.
Saí dali antes que ela desse conta de minha presença. Fui andando pelas ruas sem saber para onde ir. Senti que era o fim da linha. Ao anoitecer cheguei à ponte da cidade. As águas corriam violentamente lá em baixo. Fechei meus olhos, pensei na minha mãe que agora devia estar bem, sem mais sofrer, pensei em alguns amigos da faculdade que não sabiam o que fazer para tentar me animar, pensei em Marcela. Marcela agora feliz e revigorada, longe de mim. Então ali, apoiado nas barras de segurança da ponte me dei conta de que não tinha mais nada a perder. Abri meus olhos e admirei a correnteza lá em baixo por alguns minutos. Peguei meu celular e escrevi uma breve mensagem:
"Eu vou, mas estou levando parte de você comigo. A parte mais bonita, o brilho que você tinha quando era minha."
Enviei para Marcela. Repousei o aparelho no chão e sem mais pensar, me joguei. Não fiz muito esforço para me salvar, o escuro, a correnteza e as pedras deram cabo da minha vida. Não doeu, não doeu nadinha.
Imagem retirada do We♥It