sábado, 28 de fevereiro de 2015

Carta para meu eu de amanhã

Ei, ontem foi um dia esquisito, não é mesmo? Aquela sensação de que nada ficaria bem, que o mundo é uma droga e a vida é uma piada sem graça sobre você. Eu sei das mil vezes que se enfiou debaixo do chuveiro na esperança de que a água gelada fizesse descer pelo ralo esse peso nas costas. Easy, girl.
Eu não sei bem o que se passa em sua cabeça para ter essas quedas repentinas. Você é ótima. Tem uma família ótima. Há dois anos foi aprovada numa ótima universidade. Estuda o que gosta. Não consegue planejar uma recepção íntima para poucos amigos porque tem amigos demais e isso é ótimo. Você tem que se esforçar mais para se concentrar em tudo o que há de ótimo em sua vida e esquecer o que te aflige. Tudo o que te aflige está totalmente fora da sua capacidade de fazer dar certo. Você não sabe lidar com situações que não estão sob seu controle, mas tem que aprender. E se não der certo? Supere. É o que adultos fazem. Ou deveriam fazer. Decida se quer entrar na batalha e então lute, lute pra vencer. Caso não queira, tudo bem, mas LET IT GO. 
Coloquei o celular para despertar às sete, tente não se irritar demais, você tem compromisso. Não consegui decidir uma roupa para usar, então procure fazer isso rápido assim que acordar. Banho gelado, café da manhã, escovar os dentes. Ei, lembre-se de não usar nem máscara para cílios, você será modelo da tia Nádia, tá lembrada? 
Fique bem, porque o seu eu de ontem desejava com todas as forças que ao amanhecer você estivesse bem. Coloca um sorriso nesse rosto e nem pense em olhar pra trás. Pra que relembrar um dia ruim? Nesse momento eu daria o mundo para estar onde você está agora. Então aproveite o dia, aprenda algumas coisas novas, tire umas fotos, escreva sobre no 1 Página de Cada Vez. Depois encerre o dia e se orgulhe dele. E prometa para mim que vai ser sempre assim. 

A gente é feito pra acabar.

Eu tenho esses diálogos prontos em minha cabeça. Na sua vez de argumentar, você me diz que há muita história envolvida. Na minha vez eu digo que não ligo mais. Você diz que ligo sim e tenta pegar minha mão. Querido, a essa altura você deveria saber que não está mais autorizado a tocar minha mão. Eu a puxo de volta e digo que ligo, mas não quero mais. Não poder tocar minha mão te machuca e eu posso ver isso na expressão que transparece em suas sobrancelhas. Que bom, é pra machucar. Eu quero que machuque ao ponto de te fazer sofrer. Depois de dizer mil vezes que estou cansada desse vai e vem, você finalmente se dá por vencido e atravessa a soleira da porta e olha pra trás na saída. Acho que vi uma lágrima caindo, mas eu também estou com lágrimas nos olhos.
Daí eu abro os olhos e vejo que estou na poltrona da sala. Sozinha. Você não esteve aqui. Eu não disse que não quero mais. Você não derramou lágrima alguma. Eu que derramo uma agora. 
Fico de pé, seco a lágrima fervente que escorre pela minha bochecha. Eu não quero saber da história envolvida. Não quero mais saber das conversas que tivemos. É melhor você nem vir. Será que vem? Melhor não. Melhor que fique com o passado que sempre te puxa e jamais vai deixar de te puxar pelo pé. Fique. Vá. Não venha. Tanto faz. Tá decidido: não dou mais nenhum passo a frente com você. Até porque você não dá passos a frente, você tá sempre atrás, com essa âncora, essa incerteza, essa agonia. Meu bem, eu não puxo quem não quer seguir. E eu tô cansada de esticar minha mão na tentativa de te alcançar e trazer pra perto de mim. 
Vou te largar, mas tenho medo que me solte. Será que solta? Será que já soltou? Saio de casa, com essa roupa de ontem, deixo o celular, a carteira, as chaves, nem tranco a porta. Pego o carro e encosto a cabeça no volante. Vou para a casa da minha mãe. Não, vou pra casa da minha vó. Não, vou ver o mar. Não, vou parar numa confeitaria, comprar uns donuts e fazer a Natalie Portman em  No Strings Attached. Bato à sua porta.

- Estive pensando em você. Nossa conexão nunca falha. - Ele sorri.
- Não estive pensando em você. Na verdade eu estava indo alugar um trampolim. - Falei apontando pra lugar nenhum da rua, tentando evitar aqueles olhos.
- Alugar um trampolim? - Soube na hora que ele me lançava aquele olhar que me mata por inteiro.
- É, deu vontade de pular. - Olhei pro chão.
- Eu não tenho um trampolim para você alugar. Só um colchão velho no quintal e nem tá pra aluguel, pode pular de graça.
- Ótimo, porque esqueci minha carteira.

 Entrei  e segui pelo corredor sem parar, com medo de encarar aquele olhar.

- Ei, quer alguma coisa pra beber? Não quer se sentar? Talvez olhar pra mim? - Ele falou a última frase baixinho, mas pude ouvir.
- Sua mãe finalmente trocou o colchão é? - Falei tentando me esquivar do elefante na sala que era o fato de eu estar ali naquele estado.
- Hã, é. Já não era sem tempo. - Falou enquanto abaixava o colchão no chão do quintal. - Vá em frente, pule.

Finalmente respirei e encarei aqueles olhos. Percebi umas leves olheiras e aquelas pupilas profundas me encarando de volta. Havia ali qualquer coisa dolorida, como noites em claro ou manhãs desperdiçadas, talvez almoços solitários e tardes monótonas ou uma caixa de mensagens vazia por um tempo que ambos julgamos ser longo demais.Comecei a pular. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, coloquei mais força nas panturrilhas, sete, oito, nove, soluço. Eu chorava sem controle em meio aos pulos, mergulhada naquela insanidade que era estar chorando enquanto pulava naquele colchão velho de molas gastas. Senti aqueles braços me envolvendo pelas minhas costas e prendendo meus braços, me impedindo de tirar os pés do chão para pular de novo. Seu nariz estava em meu pescoço, respirando forte, talvez tentando segurar um choro que não veio durante todo esse tempo. 

- Por que você tem que fazer isso? Por que tem que me torturar? Você sabe em tudo o que pensei nesse tempo? O desespero que me vi ao pensar no fim? - Ele falava ao meu pescoço, enquanto seus braços me apertavam ainda mais forte.
- Eu não te torturo, Conrado.

Ele me virou, agora segurando meus braços com as mãos, me forçando a encará-lo.

- Não me tortura? A gente conversa sobre um problema, você quer um tempo, sai batendo a porta da minha casa, some por dias por Deus sabe onde, não me liga, não me responde e depois de meses aparece aqui pulando no antigo colchão da minha mãe. Se isso não é tortura, eu não sei o que é, Laura. 
- Eu amo você e não sei o que fazer com isso. Isso é tortura. Eu que sou torturada todos os dias porque não consigo deixar pra trás, não sei simplesmente andar tendo esse peso em meus ombros.
- Se você me ama, então me ame! - Ele gritou enquanto me sacudia. - ME AME, LAURA. ME AME. Para de sabotar isso, para de se afogar em três centímetros d'água. 
- Eu não sei como, Conrado. Eu não sei... Eu vim aqui pra te dizer que não ligo mais para toda aquela história envolvida. 
- Se não liga, então não ligue, é só história. Eu tô me esforçando pra desatar esses nós que me prendem àquele passado, eu não o quero mais, mas eu preciso que você esteja aqui. Eu não sei fazer isso sozinho, mas você me larga pelo meio e...
- Eu ligo. E ligo demais. E eu tenho essa aflição, de que somos feitos pra acabar. Não sei mandar isso embora.
- Não somos se você não quiser. - Ele solta meus braços e me abraça.
- Eu não quero. - Fungo em seu peito.
- Pensei que você tinha vindo para alugar um trampolim. - Sinto que ele solta um leve sorriso em meio aos meus cabelos.

CONTO

Era bonito, inteligente, aparentemente maduro. Não pude deixar de notar o sorriso bonito, a bela calça jeans e o objeto que jogou pra longe a nuvem de planos que eu estava fazendo. Ali estava, grande, boleada, reluzente e chamando a atenção para o dedo anelar da mão esquerda, onde estava imponentemente encaixada. Casado. Casado não, com aquela aliança estava mais para casadérrimo.
Tentei nem dar muito papo, mas sentado ali do meu lado, transbordando conhecimento, exalando beleza, não pude resistir. Conversamos muito mesmo. Começamos com algo banal, tipo os problemas da saúde pública do país e daí não paramos mais. Tínhamos muitas coisas em comum, descobri que além de todas as qualidades que pude notar somente com a visão, também era divertido, honesto, super simpático. "Ei, ele é casado" tive que ficar repetindo para mim mesma. Oh, por que, céus? Vinte e oito anos, quatro relacionamentos desastrosos, ainda debaixo do teto dos meus pais, um livro que nunca terminei, uma vida toda pela metade. Por que quando um cara bacana como esse aparece ele tem que ser casado? Alguma coisa eu devo ter feito para a vida ser tão cruel comigo.
Me despedi dele naquela tarde, quase noite de terça feira, quando saímos daquela sala de espera onde passamos quase o dia todo esperando uma consulta. Achei que nunca mais o veria. Também, qual seria a probabilidade de tornar a encontrá-lo? Fui embora meio chateada porque né, ele bem que poderia ser solteiro. "Está tão difícil arrumar homem descente hoje em dia", a frase que minha mãe sempre me falava nunca ecoou tão alto na minha cabeça. A essa altura eu já estava achando meio que impossível encontrar esse alguém para me completar. Eu ficava imaginando como seria minha vida ao lado de alguém, quem sabe me casar, viajar, não ser mais tão sozinha, não trabalhar tanto, começar a realizar meus sonhos, ter uma casa, filhos... Quando será que as coisas iriam começar a mudar?
O resto da semana passou correndo, milhares de assuntos para resolver, milhões de coisas para fazer, trilhões de coisas na cabeça, mas o rapaz da sala de espera estava lá, no meio da minha agenda mental, ocupando um lugarzinho, aquela terça feira do meu calendário. Cheguei até a sonhar com ele, algo que nem lembro, mas acordei me sentindo muito babaca.
Quinta feira da outra semana fui buscar o resultado do meu exame. Lá estava ele, sentado, fitando a televisão, tipo quando a gente olha sem ver. Fui até a recepção meio que fazendo um pouco de pose, fingi que não o vi pra não ter que dar aquele "oi" e parecer desesperada. Quando terminei de falar com a secretária ela me mandou aguardar, lógico. Tive o cuidado de passar os olhos pela sala como se procurasse um lugar vago, mas eu sabia exatamente que havia um ali, bem ao lado dele. Tentei parecer o menos teatral possível nessa minha busca por um lugar quando na verdade eu já sabia onde eu iria sentar. Graças aos céus ele bateu os olhos em mim antes que eu terminasse minha pequena cena.
-Valentina!
-Ei, Theodor. - Cruzei o espaço da recepção até a cadeira e me sentei.
-Mas que coincidência. - Ele abriu um sorriso.
-Nossa, é verdade. E aí, veio buscar o resultado do exame?
-Sim, você também né?

E aí começamos a conversar. Mas dessa vez foi diferente, ele estava meio abatido
quando avistei justamente ao lado do lugar que eu tinha escolhido para me sentar. Estava me sentindo uma adolescente. Graças a Deus ele que me "viu primeiro"

Eu sempre fiquei me martirizando com isso. Essa mania, quase doença de achar que "vai mudar, um dia vai mudar". O QUE VAI MUDAR? Eu vou mudar? Você vai mudar? O mundo vai mudar? Eu desejo com todas as minhas células, inflamo de vontade de fazer isso passar, mas cada dia que passa, não parece "menos um dia que se foi" e sim "mais um dia desse jeito". Preso nesse mundo que você e eu criamos, detalhamos, reinventamos todos os dias até que você resolve largar minha mão e abandonar o sonho.